Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 08-02-2006

A Via do Coração
"Esperávamos a melhor hora para dar um carreirão até a árvore cobiçada e voltar com os bolsos, a sacola e a beirada da blusa de malha cheia de frutas..."
A Via do Coração

Um quintal enorme, todo murado, cheio de goiabeiras, pitangueiras, mangueiras, cajazeiros e araçazeiros, com todas as árvores carregadas de frutos maduros. Tentação pura para uma criança de 10 anos. Mas era o araçá a minha perdição.

As outras frutas eram abundantes no quintal da minha casa. Só o araçá não. E nessa tarde, com a árvore carregada de frutinhas amarelas, ficamos pendurados atrás do muro alto, eu, Juarez, Maurílio, Lenilson, César e Carlinho. Só meninos, pois eu odiava brincar com meninas, achava as brincadeiras calmas demais, sem espírito de aventura.

Esperávamos a melhor hora para dar um carreirão até a árvore cobiçada e voltar com os bolsos, a sacola e a beirada da blusa de malha cheia de frutas. Era um ritual que se repetia quase todos os dias. Era necessária muita paciência, pois sempre havia um movimento grande de pessoas pelo quintal e não podíamos nos arriscar a ser vistos, pois nossas famílias eram conhecidas do dono do quintal. Mas, naquela tarde, estávamos com sorte. Pelo menos achávamos.

E, quando o quintal estava deserto, pulei rapidamente o muro e subi no pé de araçá. Quando já estava lá nas "grimpas", carregando todas as frutinhas que conseguia, joguei a sacola e falei baixinho: "Segura aí Juarez !". Mas Juarez não estava lá embaixo. Nem os outros. A sacola estava caída ao lado de um par de sapatos pretos, engraxadinhos, que eu conhecia muito bem e sabia a quem pertenciam. Eram do dono do quintal, do dono das frutinhas, que estava ali, parado, olhando para a sacola.

Lá de cima eu podia ver a sua careca, que parecia maior e mais brilhante. A calça preta, a camisa azul claro e os óculos de grau completavam a cena. Tudo marca registrada dele, do Reverendo Jader Coelho. Eu queria que a terra se abrisse num buraco imenso e me engolisse junto com o pé de araçá e a sacola cheia de frutinhas, prova viva do meu "crime". Ele olhou para cima e com aquela voz calma, porém firme, que eu também conhecia muito bem, falou: "Desce daí Ivilisi".

De como eu desci e o que aconteceu com os araçás que estavam guardados na beirada da minha blusa de malha eu não me lembro. As pernas tremiam, o coração batia acelerado, a boca ficou seca . Para meu espanto a bronca e os gritos altos não vieram. Só me lembro daquela voz penetrante, significante e marcante. Assim como a do seu irmão , professor e pastor.José Coelho, que teve o árduo trabalho de me ter como aluna quando era diretor da escola W.P.M.

Vozes que passaram pela via do meu coração. Por isso tiveram significado, por isso me lembro delas até hoje. Não me lembro dos incontáveis gritos dos vizinhos de quem quebrávamos o vidro da janela com boladas, ou de quem borrocávamos as maçanetas das portas com cocô de cachorro. Mas me lembro claramente da voz do Rev.Jader e do Pr.José Coelho. Eram vozes que me chamava à reflexão, que me respeitava apesar dos erros, que me fazia querer ser melhor.

Eu sentia que ele não estava nem um pouco preocupado com seus araçás, mas com o que poderia estar sendo desenvolvido na índole de uma criança de 10 anos de idade, apesar da maioria dos moleques de dez anos roubar frutas no quintal do vizinho. Eles não falaram aos meus ouvidos, falaram ao meu coração. Eles foram, na minha vida, precursores da atual e tão difundida inteligência emocional.A vocês, meus mestres, o meu carinho. Pois mestre não é aquele que ensina, mas fundamentalmente, o que consegue aprender.


    Fonte: Redação Maratimba.com
 
Por:  Ivilisi Soares Azevedo    |      Imprimir